“Eu sou cético quanto à capacidade da arte em si de gerar crescimento econômico”

Por Bernardo Vianna
Via Blog Acesso

Pesquisador da Universidade de Miami, George Yúdice é o autor de A Conveniência da Cultura, obra que, atualmente, tornou-se uma das principais referências para o estudo da cultura e de sua economia. Dedicado ao estudo das indústrias criativas, Yúdice estará, em maio, em Salvador, quando participará do III Seminário Políticas para Diversidade Cultural, durante o qual ministrará a conferência de encerramento Usos da cultura na era global.

Em entrevista ao Blog Acesso, o pesquisador falou sobre mercado, bem público e diversidade cultural. A seguir, você lê a primeira parte da entrevista concedida por Yúdice.

Acesso – Você vê na arte e na cultura potencial para estimular o crescimento econômico e melhorar as condições sociais?

George Yúdice – Para ser honesto, eu sou cético quanto à capacidade da arte em si de gerar crescimento econômico. A meu ver, a prática da arte em si não é o que gera lucro; o que o gera é a arte produzida, promovida, distribuída e mercadejada. Na atualidade, virou premissa da política cultural acreditar que é possível desenvolver e administrar sistemas de gestão da arte e da cultura que consigam crescimento econômico e bem-estar social. Poder-se-ia pensar numa dialética entre a mercantilização e o bem público. No primeiro processo, se reorienta o valor da cultura de acordo com os princípios e a lógica do mercado, assumindo a condição de serviço comercial. No segundo, trata-se de gerir a cultura de maneira que fortaleça os valores e práticas das comunidades. Mas existe realmente uma linha divisória talhante entre as duas abordagens? Um serviço comercial pode satisfazer as necessidades do bem público? Não é isso o que acontece com os serviços de TV a cabo ou da Internet? São serviços comerciais que abastecem os interesses de entretenimento e comunicação da cidadania. Mas realmente abastecem esses interesses? É verdade que milhões de pessoas veem e querem ver novelas da Globo e se comunicar através do Facebook, mas desde o ponto de vista da economia política do desejo. A cultura mercantilizada promove gostos que levam a consumir ainda mais certo tipo de cultura, que, aliás, difunde valores consumistas, se não no conteúdo da narrativa, certamente na publicidade que a acompanha e até se insere no argumento das comunicações. Mas também é verdade que os telespectadores não são simples robôs que são modelados pelos programas. Segundo a teoria da resistência, criatividade e empoderamento do consumidor, o consumo pode ser um ato de subversão às forças que encarrilham o comportamento (veja-se o livro Textual Poachers do Henry Jenkins, onde ele propõe que os fãs transformam os conteúdos que admiram em uma cultura própria). Entre essas perspectivas, achamos a teoria da negociação contextualizada entre conduções estruturais e a agência dos consumidores, de maneira que o consumo cultural não é nem determinação inexorável nem empenho voluntarista (veja-se o livro Consumidores e Cidadãos do Néstor García Canclini).

Acesso – E quanto à gestão desses processos?

O dito acima se relaciona com a cultura gerida pelo mercado e a maneira como os consumidores se relacionam com essa cultura: acomodam-se, resistem, se apropriam dela. Mas também é importante a cultura gerida pelo Estado e o terceiro setor. As comunidades têm seus próprios gestores “orgânicos”, como, por exemplo, os terreiros de candomblé no Brasil ou as festas patronais na América Central. A ideia de que a cultura existe sem gestão nenhuma é incorreta. O problema é o alcance das culturas comunitárias perante o domínio da indústria cultural hegemônica. Quando pensamos no valor social da cultura comunitária, nos referimos aos valores e discursos que gerem os moradores e os aprovisionam de materiais para pensar a vida em comum.

Acesso – Que experiências você daria como exemplo dessa gestão?

G. Y. – Exemplo que aproveitei muito foram as visitas ao Sarau da Cooperifa na periferia de São Paulo. Esse tipo de atividade não se registra nos estudos de consumo cultural. Essas pesquisas processam os dados para a audiência de shows de música popular, carnaval de rua ou no sambódromo, ensaios de escola de samba, espetáculos, livrarias, eventos literários. Mas poderia complementar-se essa informação com entrevistas que indaguem mais profundamente na complexidade do que exatamente se consome em atividades participativas como as rodas de samba e os saraus, que ademais expressam uma “comunitariedade” que não se limita aos moradores imediatos da área.

Essa diversidade de oferta e consumo também é confirmada por Écio de Salles, diretor da FLUPP, ex-diretor de comunicação do Grupo Cultural Afroreggae e ex-secretário da Cultura de Nova Iguaçu. Num ensaio em que elabora a ideia da “articulação comunitária”, Salles explica que o sucesso do Afroreggae e outras iniciativas culturais na periferia é a articulação “de práticas e saberes já presentes de algum modo no cotidiano da comunidade” com outros trazidos por líderes de oficinas e oportunidades, como é o caso da FLUPP ou da Universidade das Quebradas, que justapõe e misturam saberes de diversas origens. Salles observa a capacidade que tem o consumo cultural de transformar subjetividades: “Nessas organizações, a música, a dança, o teatro, o circo e a capoeira, entre outras, além de formas estéticas, são também linguagens que promovem certo diálogo, aquele capaz de produzir subjetividade – reescrever trajetórias de vida, modificar pessoas e comunidades, repensar a vida e transformá-la”.

Essas iniciativas são exemplos de cultura viva, na qual se rompem os cânones artísticos e o valor se coloca na criatividade sem hierarquias. Nos melhores casos, não se precisa diferenciar entre “arte em si” e “cultura comunitária.” A criatividade acha-se em todo lugar. Em 2010, a Escola Livre de Cinema foi designada Ponto de Cultura, programa criado em 2005 pelo então Ministro da Cultura Gilberto Gil a fim de fortalecer as práticas culturais existentes em várias comunidades no Brasil. As práticas apoiadas pelo programa variam desde as belas artes até as culturas vernáculas mais tradicionais. A ideia era não só de reconhecer a diversidade de práticas culturais, mas articulá-las em rede para o conhecimento mútuo da enorme diversidade de brasileiros.

Esta longa resposta pode-se resumir da seguinte maneira: Estimular crescimento econômico pode provir da gestão da arte e da cultura. Um pintor, um escritor, um dançarino, geram lucro inseridos na gestão da produção, marketing, branding, distribuição. A situação é semelhante para a contribuição social da arte e cultura: depende em grande parte da gestão. As iniciativas mencionadas têm gestores: Heloísa Buarque de Hollanda, Sérgio Vaz, Faustino, Écio de Salles, Gil e muitos mais. Que a arte e a cultura sejam gerenciadas para gerar economia e benefício social não as diminui. Se há diminuição isso se deve à qualidade e aos objetivos da gestão.

Acesso – Quais os perigos de se considerar a cultura meramente como recurso instrumental para o crescimento econômico?

G. Y. – Desde o século 18, a partir do Kant, há uma tradição de valorizar a dimensão crítica da arte; para os teóricos Horkheimer e Adorno, essa criticidade perde-se com a indústria cultural, voltada à popularidade que se traduz em lucro. Mas o Jenkins também tem razão: o consumidor ou o fã não é um robô que decodifica os protocolos programados nas obras. Como explica García Canclini, os consumidores se apropriam e transformam. Além disso, certas novas mídias, entre elas os videogames e as redes sociais, têm outros valores que são pouco desenvolvidos nas belas artes – por exemplo, a interação –, mas não necessariamente em certas práticas artísticas comunitárias como a roda de samba e a chamada e resposta característica das artes africanas.

Acaso o maior perigo de considerar a cultura “meramente como recurso instrumental para o crescimento econômico” seria o desenho de políticas culturais que protagonizem essas expressões e atividades que geram lucro, como grandes equipamentos – museus, estádios, parques temáticos, etc. – que devem atrair grandes públicos e turismo. Um grande perigo são os projetos de revitalização urbana nos quais a construção de novos museus, amiúde por starquitetos, promete melhorar e estetizar o tecido urbano, fortalecer a economia, e criar empregos. Em alguns casos até prometem fomentar a integração social, sobretudo dos moradores das áreas onde se instalam os museus, em geral zonas urbanas degradadas, mas onde, em quase todos os casos, acabam produzindo gentrificação.

Acesso – Muito se tem falado em políticas de fomento à economia criativa como modelo de crescimento sustentável.

G. Y. – Outra tendência são as políticas culturais voltadas às chamadas indústrias criativas, que têm sua origem na criatividade e cujo valor se mede na rentabilidade dos direitos de propriedade intelectual que se vendem ou licenciam no mercado, cada vez mais um mercado de exportação de bens e serviços voltados ao crescimento econômico. Se, por um lado, o relatório A Economia Criativa, da UNCTAD, de 2008, elogia a geração de renda e emprego, a inclusão social, a interação com tecnologia, propriedade intelectual e objetivos turísticos e o fortalecimento do valor agregado do conhecimento que na atualidade é a dimensão mais importante de desenvolvimento, por outro lado o relatório reconhece as contradições e limitações do que expõe. Por exemplo, o relatório inclui um resumo do estudo de Paulo Miguez sobre o carnaval da Bahia mostrando grandes montantes produzidos pela festa, mas também indicando a enorme desigualdade e exclusão social na distribuição dos recursos gerados pelo carnaval baiano.

Mas existem contra-exemplos que mostram que deve haver um equilíbrio entre a geração de renda e emprego, por um lado, e bem-estar social, por outro. Esse é o caso de Peekskill, uma pequena cidade a cerca de uma hora de Nova York, que procurou criar emprego no setor cultural, mas também integrar as minorias raciais no projeto. Com a desindustrialização dos anos 1960 e 1970, as populações minoritárias, afro-americanos e porto-riquenhos que se estabeleceram lá para trabalhar na indústria têxtil, perderam seus empregos e muitos caíram na pobreza, na delinquência e no uso de drogas. Com a gentrificação de Soho, Chelsea e outros bairros nova-iorquinos onde os artistas tinham liderado a transformação urbana, o êxodo de artistas começou. Uma coalizão de vários grupos setoriais – privado, terceiro setor e público – elaborou um plano não só para atrair os artistas, mas também para criar empregos e integrar a minoria empobrecida nesta nova iniciativa. Para atrair artistas, uma empresa mista público-privada reformou as velhas fábricas e lofts, ofereceu-os a 20% do custo em Nova York e garantiram empréstimos de até 80% do preço. Além dos lofts, o projeto de renovação urbana criou um grande museu e outros espaços alugados para galerias e outros setores de atividades relacionados com a arte. E para conseguir um efeito multiplicador sobre o emprego, a parceria governo e banco ofereceu empréstimos e créditos para as empresas que vendem materiais de arte e serviços oferecidos. A integração dos mais pobres nesta nova economia da cultura foi conseguida através da oferta de incentivos especiais para as minorias que abriram negócios relacionados às artes. E, finalmente, a coalizão buscou impulsionar o turismo, estabelecendo uma rota artística de Nova York com a venda de pacotes para visitar galerias e museus em cidades vizinhas. Trata-se de um plano não só econômico, mas também social e cultural abrangente e sustentável. Esse e alguns outros projetos bem sucedidos – por exemplo, o Festival de Jazz e Blues de Guaramiranga – confirmam o ponto que enfatizei anteriormente: o equilíbrio entre o fator econômico e o social, entre os valores mercadológicos e os estéticos, requer uma boa gestão. O que não quer dizer impor, mas sim oferecer oportunidades como as acima mencionadas para alentar o bem comum.