Segunda parte da entrevista com Yúdice

Na semana passada, o blog Acesso publicou a primeira parte da entrevista com George Yúdice, que fará a conferência de encerramento do Seminário Políticas para Diversidade Cultural, confira agora a segunda parte da entrevista feita por Bernardo Vianna, do Blog Acesso.

Acesso – Em que medida podemos pensar a Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade de Expressões Culturais como estratégia para resguardar a diversidade cultural de um modelo de crescimento que depende de uma economia de escala?

George Yúdice – A Convenção oferece um marco abrangente, com validade jurídica internacional, que encoraja e orienta as nações na legislação de políticas públicas para proteger e promover a diversidade de expressões culturais. Os stakeholders de cada país devem negociar com os poderes públicos as políticas e medidas mais efetivas para garantir a sustentabilidade não só da diversidade cultural como também do que poderíamos chamar de ecossistema social e cultural.

A necessidade de propor um ecossistema cultural ficou evidente a partir da década de 1980, por dois motivos. Primeiro, devido à resistência de países como França e Canadá, nas negociações da Rodada do Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – GATT [instância de fomento ao livre comércio internacional antecessora da Organização Mundial do Comércio –OMC] e nos acordos de livre comércio, à ideia de que a cultura consiste em bens e serviços como quaisquer outros, que podem ser comercializados sem efeitos colaterais na qualidade da vida. Como no análogo meio ambiental, os recursos não são somente para a exploração econômica, também portam valores que se pervertem quando só impera a lógica comercial. Em segundo lugar, o reconhecimento pelas agências dedicadas ao desenvolvimento, como Banco Mundial e BID, de que a cultura serve para o desenvolvimento – o que requer cautela com seu uso instrumental. Já é lugar comum dizer que cultura cria empregos e promove coesão social. Mas a instrumentalização da cultura como recurso econômico ou social requer reflexão sobre o que fica em risco.

Acesso – Na prática, quais são os riscos desse processo? E como a Convenção atua, no sentido de mitigar esses riscos?

G. Y. – Por exemplo, o turismo cultural pode gerar renda para comunidades pobres, mas o desenvolvimento sustentável dessas comunidades tem que ser medido em termos do controle que elas têm sobre seus valores, práticas culturais, identidades, e não só nos termos de sustentabilidade econômica.

A Convenção é uma estratégia para corrigir esses problemas, mas tem que escapar da retórica típica das convenções intergovernamentais rumo à especificidade das políticas e estratégias concretas. A grande diferença em relação às políticas de proteção da era do GATT é que a diversidade cultural que promove a Convenção se concebe como uma ecologia global a partir do serviço público, contemplando a discriminação positiva para os países em desenvolvimento e as minorias e grupos indígenas internos às nações; o fomento de parcerias entre os setores público, privado e terceiro; o apoio especial às médias, pequenas e micro empresas, que são o sine qua non da diversidade; e até o setor informal, que é o mais amplo em certas áreas da produção e circulação de bens e serviços culturais.

Acesso – Existe, portanto, tensão entre o que se entende como bem público cultural e a atividade cultural que gera propriedade intelectual?

G. Y. – Existe, sim. Como escreve Ana Carla Fonseca Reis, “de pouco adianta estimular o crescimento de setores geradores de montantes siderais de direitos de propriedade intelectual, se a criação dessa riqueza produzida não for acompanhada de uma melhor distribuição de renda, propiciada pela inclusão socioeconômica”. As leis atuais de propriedade intelectual estão totalmente fora de lugar no entorno digital, por exemplo. A digitalização de qualquer texto, imagem e som, e sua transmissão na internet aumentou o volume do comércio internacional das indústrias culturais a tal ponto que, agora, ocupam um dos lugares mais destacados, juntamente com outras indústrias de propriedade intelectual (patentes, marcas, etc.). Essa mudança tem desencadeado um processo acelerado de proprietarização de tudo o que é digitalizável, incluindo o patrimônio cultural de inúmeros grupos, em grande parte indefesos, na busca desenfreada de conteúdos pelas empresas. O mesmo processo ocorre na colonização da vida cotidiana de milhões de usuários, que participam de redes sociais cujas atividades se tornam propriedade rentável. Trata-se da erosão do bem público.

Acesso – Como se relacionam as ideias de sustentabilidade cultural e ambiental?

G. Y. – A partir da década de 1970 foram operacionalizadas medidas para frear a degradação do meio ambiente, que as iniciativas de desenvolvimento urbano, agrícola e infraestrutural ocasionaram aos recursos necessários para a vida. A constatação da deterioração demonstrou que existe uma imbricação recíproca entre meio ambiente e economia. No longo prazo, uma economia saudável, que tenha recursos para operar, precisa de um meio ambiente saudável ou sustentável. Em um mundo no qual os líderes consideram a economia como o setor mais importante, a deterioração ambiental, entendida como ameaça à economia global, teve que ser abordada como questão fundamental nas políticas de desenvolvimento.

Acesso – Podemos associar o mesmo processo ao campo cultural?

G. Y. – Como explica David Throsby, pode-se estabelecer uma analogia entre capital natural e capital cultural. O capital natural provém do legado dos processos criativos da natureza, dos recursos renováveis e não renováveis, os ecossistemas que os mantêm e a biodiversidade. O objetivo da ecologia é a manutenção desses recursos. De forma semelhante, o capital cultural provém do legado dos processos criativos das ações humanas. A ecologia cultural tem o objetivo de garantir a manutenção dos recursos culturais, que podem ser renováveis (por exemplo, gêneros musicais) ou não renováveis (uma obra de arte). Vale a pena sublinhar que a cultura, como a natureza, também pode ter perdas. No século 20, deixaram de existir quatro mil línguas – quase nenhuma delas estava escrita ou gravada, o que permitiria sua recuperação. Igualmente, uma vez extinto o último mestre de ofício não há como recuperá-lo. Em alguns casos, tanto a natureza quanto a cultura sofrem o mesmo processo de perda. O desaparecimento de uma espécie de árvore, devido à devastação da floresta, elimina tanto o material com o qual se fazem as máscaras rituais quanto o ambiente no qual vive uma tribo indígena. Em comunidades tradicionais, existe um equilíbrio nas interações para manter o fluxo de recursos naturais. Com a modernização e a industrialização, sobretudo em contextos liberais, prima o valor de mercado, com o consequente esgotamento ou deterioração dos recursos naturais.

O que se faz evidente é que, na modernidade, certos instrumentos que fizeram possível o desenvolvimento econômico das indústrias culturais inviabilizaram muitas das expressões culturais e, em alguns casos, as asfixiaram devido à impossibilidade de competir. O problema não é o mercado em si, mas certos tipos de mercado, que visam só o grande lucro.